O presidente da Amagis, em seu artigo Estado de Direito, defendeu de forma taxativa a súmula que versa sobre o uso de algemas. Afirmou que o referido documento “não desestabiliza o trabalho da polícia”, e ponto final. Embora tenha alinhavado alguns princípios e dispositivos legais ao longo do texto, a justaposição de todos eles não autorizava uma ilação tão categórica. Respaldar jurídica e doutrinariamente a súmula das algemas não dá margem suficiente para sair deduzindo que sua aplicação isentará as polícias de todo e qualquer embaraço.
Em que pese o uso de algemas esbarrar em graves questões de ordem prática – incontornáveis, por sinal – os argumentos do magistrado enveredaram única e exclusivamente pelos caminhos abstratos da doutrina e da hermenêutica jurídica; não foi por outra razão que sua dialética quedou-se um tanto ou quanto dissociada da árdua realidade na qual se insere a atividade policial (realidade essa, diga-se de passagem, muito distante dos gabinetes, plenários e bibliotecas). Resta-nos saber, portanto, se alguma espécie de enquete foi realizada junto aos órgãos de segurança pública cujo resultado autorizasse uma opinião tão decisiva.
O magistrado argúi que a súmula não desestabilizou o trabalho policial posto que não chegou a obstar por completo o uso das algemas, condicionando-lhe apenas a uma justificativa plausível. Porém, o ponto crucial a ser contemplado em toda essa discussão reside precisamente na controvérsia em torno dessa necessidade de uma justificativa posterior que se mostre legítima aos olhos das autoridades judiciárias.
A súmula determina que as algemas só deverão ser usadas frente a um “fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros”. Contudo, a impropriedade dos termos empregados no referido documento dá margem a que muitas confusões e inseguranças se interponham ao trabalho policial. Sendo o receio uma impressão intrinsecamente subjetiva sobre algo hipotético, exigir-lhe fundamento torna-se quase uma contradição em termos. Façamos, pois, um breve exercício lógico.
Na súmula, o termo receio foi utilizado no sentido de um temor quanto a ocorrência de um possível dano ou malefício situado no tempo futuro. Portanto, por estar apenas no plano das probabilidades, a chance do dano ocorrer poderá oscilar, para mais ou para menos, numa escala percentual de 0 a 100, sem nunca alcançar esses valores. Na hipótese de se atingir um dos dois extremos, não haveria porque se falar em receio; estaríamos aí diante de uma certeza.
O dano mais gravoso que pode advir da não utilização das algemas atribui-se a uma súbita e ofensiva reação do preso que atente contra a integridade física dos policiais e de terceiros. Por outro lado, uma possível tentativa de fuga, se comparada à situação anterior, não chega nem a se configurar um fato relevante.
Em outro artigo de minha autoria, restou demonstrado que as reações de um indivíduo no momento de sua prisão (ou em qualquer outra situação crítica) não podem ser previstas senão por meio de probabilidades muito precárias. Isso é um fato inegável da psicologia que nenhuma filigrana jurídica poderá refutar. E não precisa ser um perito em psiquiatria forense para atestar a veracidade de uma proposição tão óbvia e ululante. Basta apenas que se espelhe na sagacidade investigativa de um Sherlock Holmes:
“Enquanto um homem individualmente é um quebra-cabeça insolúvel, no conjunto ele se torna de uma certeza matemática. Você nunca pode prever o que um homem fará, mas você pode dizer com precisão o que, em média, um deles fará. Individualmente, eles variam, mas, em média, se mantêm constantes” (Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes).
Elementar, meu caro Watson. O nosso bom detetive defende a tese de que a previsão do comportamento humano só é possível quando o tomamos dentro de uma média. Assim sendo, prossigamos em nossas elucubrações matemáticas. Na hipótese de termos apenas 1% de chance de um preso reagir durante sua condução, atentando contra a vida do policial, eu perguntaria: seria justo submeter o agente da lei a tal risco, mesmo que ínfimo, em nome de uma suposta dignidade do preso? Quem, em sã consciência, participaria de uma roleta russa mesmo sabendo que teria apenas 1% de chance de levar um tiro nos miolos? Pois bem: uma súbita reação do preso, ainda que aparentemente remota, pode ceifar a vida de um policial. Então, por que sujeitá-lo de forma tão vil a essas danações do capeta? O que vale mais – responda depressa: um sentimento subjetivo de dignidade ou a vida do policial? Qualquer indecisão poderá ser fatal...
A verdade é que essas reações súbitas e ofensivas por parte dos presos, durante sua custódia, são muito mais comuns do que supõe a vã jurisprudência. Mesmo assim, não satisfeitos em expor o policial à tão grave perigo, ainda querem que ele fundamente por escrito as razões evidentes que o levaram a não colocar a própria vida em risco. Em seguida, irão submeter suas justificativas à apreciação subjetiva de uma autoridade judiciária, que nada entende da vivência e prática policial, e que poderá inclusive responsabilizar civil e criminalmente o agente da lei caso o uso das algemas não seja convalidado, a posteriori, desde a tranqüilidade e conforto de um gabinete. Seria cômico se não fosse trágico...
Voltando ao artigo do magistrado, chama atenção também o fato de que em todo o seu arrazoado jurídico não houve nenhum espaço para contemporizações, relativizações, ou mesmo para uma rápida análise comparativa.
Sua explanação, por exemplo, evocou a autoridade jurídica de um Pontes de Miranda, citando trecho do seu livro História e Prática do Hábeas Corpus, mas esqueceu-se de mencionar um dado bastante relevante: a 1ª edição desta obra data de meados do século passado! Ou seja: as recomendações do ilustre doutrinador no sentido de que todo acusado deva “comparecer à justiça com mãos e pés livres”, se levadas a cabo nos dias que correm, nos pareceria da mais cândida e singela utopia. Ou será que a criminalidade brutal e sanguinária que enfrentamos hoje se iguala àquela sobre a qual teorizavam os nossos antigos patrícios? Garanto que Pontes de Miranda, se vivo fosse, não defenderia uma idéia dessas sem que um intenso rubor lhe subisse à face.
Ainda em relação ao artigo, falou-se muito em Estado de Direito, mas em nenhum momento se contrapôs o exemplo brasileiro a qualquer outro país do mundo. Como é tratada a questão das algemas em outras nações consideradas inclusive mais desenvolvidas e democráticas? Nos Estados Unidos da América, onde o Estado de Direito realmente prevalece e a instâncias judiciárias não são suprimidas, usam-se as algemas como um procedimento totalmente corriqueiro, ao qual até celebridades de aparência inofensiva se submetem sem alaridos ou poses de dignidade ofendida.
Vide, por exemplo, o caso da socialite e milionária Paris Hilton que foi presa e algemada pela polícia de Los Angeles; o pop star Michael Jackson preso e algemado em Santa Bárbara; o executivo americano Kenneth Lay, presidente da Enrom, preso e algemado por crimes financeiros; o executivo americano Scott Sullivan, da Worldcom, preso e algemado também por crimes financeiros; Andrew Carlssin, o espertalhão da bolsa de valores, preso por crimes contra o sistema financeiros, e devidamente algemado; o piloto brasileiro Hélio Castro Neves, preso por sonegação fiscal e evasão de divisas, conduzido de algemas em punho e correntes nos pés! E por aí vai... O contraste com a realidade americana, portanto, mostra que essa “suprema” rejeição que algumas pessoas nutrem pelas algemas, além de inusitada, dissimula questões de natureza claramente ideológicas e classistas.
Guardo ainda em viva memória a história do pobre lavrador Josias Francisco dos Anjos que há tempos atrás fora preso, algemado e exposto aos flashes e câmeras de TV por ter cometido o gravíssimo ilícito de descascar o troco de uma árvore nativa. A intenção do ingênuo camponês era usar as cascas para fazer um chá medicinal a ser ingerido por sua esposa enferma; mas, por esse bárbaro crime de lesa-natureza (porca miséria!), acabou indo parar na delegacia de algemas em punho. Pois bem. Nesse episódio, não lembro de ter aparecido um único guardião da Constituição ou paladino do Estado de Direito que tenha se sentido minimamente arranhado em sua sensibilidade democrática.
E aqui abro um breve parêntese: não chegaria ao ponto de dizer que este senhor deveria ter sido poupado das algemas. Ao contrário, acho mesmo que ele nem sequer merecia ser preso. Este foi só mais um caso de aplicação, digamos, histérica, da legislação ambiental. Vamos adiante!
Ao abordar as implicações legais da 11ª súmula vinculante sobre o ordenamento jurídico que versa sobre a matéria, o magistrado se mostrou evasivo quanto às legítimas preocupações dos policiais. A estes profissionais pouco importam as repercussões que a súmula terá no âmbito dos tribunais do júri. Em tais recintos, os magistrados são absolutamente soberanos em suas deliberações, motivo pelo qual deverão arcar com todos os eventuais prejuízos decorrentes de uma dispensa temerária no uso das algemas.
Se a súmula tivesse o intuito de disciplinar a utilização de tais instrumentos apenas no âmbito das audiências ou do júri, teria sido bem específica ao atribuir as responsabilidades civis e criminais tão-somente às autoridades judiciárias. Porquanto, ostentar essa história de que o hábeas corpus de um “humilde pedreiro” foi a gota d’água para se editar a 11ª súmula vinculante nos soa quase como um conto da carochinha.
Por fim, tem-se repisado obsessivamente o lugar-comum sobre o uso espetaculoso das algemas (como se elas fossem feitas de luz neon!), mas raramente se discute a sério a corrupção endêmica que graça em nosso país, cujos escândalos – esses, sim, espetaculosos – ofendem a dignidade de todo um povo e ferem os princípios constitucionais que lhe são mais caros. Diante de uma conjuntura como essa, eu pergunto: será que vivemos mesmo sob um Estado Policialesco?
Fonte: Luciano Porciuncula Garrido é Psicólogo, Agente de Polícia Civil e Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos; Ex-Policial Militar; exerceu cargo de Psicólogo Forense no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e cargo de Psicólogo Clínico no Hospital Universitário de Brasília; é membro do Instituto Millenium. E-mail: garrido1974@gmail.com